Hail To The Thief, a volta das guitarras
[Por Marcelo Costa, jornalista e editor do Scream & Yell]
Se o mundo não fosse um lugar tão cruel e a caça aos célebres tão intensa, “Hail To The Thief”, sexto álbum do Radiohead, seria o disco óbvio após o estrondoso sucesso do mítico “Ok Computer”. Acontece que o sucesso é uma moeda de dois lados bem definidos, e um deles cobra seu quinhão com voracidade, pois o mundo ainda não está pronto para lidar com pequenos momentos de genialidade. A vida, porém, sempre surpreende, e pressionados contra o muro, o Radiohead deu um giro de 180 graus para baixar a guarda do mundo e voltar a fazer o que realmente gosta em seu disco mais à vontade.
Thom Yorke virou celebridade com o sucesso de “Ok Computer”, e a banda quase entrou em colapso com a rotina – muitas vezes destruidora – da fama. O flagrante deste momento foi registrado no filme “Meeting People Is Easy”, retrato de uma banda se libertando do mercado fonográfico (e de si mesma), e foi amplificado com a dobradinha de discos de atmosfera eletrônica e antipop lançados na seqüência: “Kid A” (2000) e “Amnesiac” (2001). No começo de 2002, o vocalista confidenciava: “Bem, a idéia é não usar computadores no novo disco. Vamos ver quanto tempo que dura (rindo)”.
Antes de a banda entrar em estúdio, porém, uma decisão daquelas que só o Radiohead tem culhão de tomar levou o grupo para shows na Espanha e Portugal em julho e agosto com nada menos do que 16 canções inéditas na bagagem sendo que 12 entraram em “Hail To The Thief”. Os shows caíram na web, fãs discutiam e babavam nas novas canções, e a banda acompanhava online o burburinho como se estivesse consultando amigos sobre o que fazer com seu próprio futuro.
Como resultado deste método, as gravações de “Hail To The Thief” duraram apenas quatro semanas, com a banda optando por duas semanas na ensolarada Los Angeles (e outras duas em sua cidade natal, Oxford) em detrimento de estúdios do gélido leste europeu que abrigaram as sessões de “Kid A” e “Amnesiac”. Explicava Thom Yorke: “Os dois últimos registros em estúdio foram uma verdadeira dor de cabeça. Gastamos tanto tempo com computadores que chegamos a um ponto em que dissemos: ‘Isso é suficiente. Nós não podemos mais fazer isso’”. Não podiam, mas fizeram de novo. Ou quase.
“Hail To The Thief” não é só o alardeada volta às guitarras do quinteto. Ele bate no liquidificador a inocência juvenil (aqui, vertida em experiência) dos dois primeiros álbuns com a virulência distanciada dos dois discos de esconderijo (”Kid A” e “Amnesiac”). O resultado é, ao mesmo tempo, simples e grandioso. Climas densos alternados com guitarras, às vezes, na mesma canção. As canções soam mais cheias, inventivas, variadas, tensas, emocionais. É o Radiohead atingindo a maioridade e se reinventando em um mundo que se reinventa a todo minuto.
Cinco anos depois de “Ok Computer”, o mundo já tinha digerido e entendido qualé a do grupo, o que fez com que o álbum decolasse nas paradas, mas não transformasse a banda na última novidade do verão (algo meio inconcebível já que, naquela época, eles carregassem dez anos de estrada nas costas). Eles deram uma volta ao mundo e decidiram parar o tempo, optando por brincar – estilosamente – de difíceis na expectativa de que o mundo os alcançasse. E finalmente o mundo os alcançou, mas se as guitarras voltaram ao som do quinteto, o mau-humor com o estado das coisas atingiu picos estratosféricos nas letras.
Não à toa, se a palavra “amor” ficou de fora de “Amnesiac”, em “Hail” ela só aparece perdida e nua na última (e grande) música do álbum, “A Wolf At The Door”. Nas outras, “inferno”, “veneno”, “diabo”, “frutas podres”, etc…, nos fazem lembrar que viver no Planeta Terra no ápice do capitalismo não é brincadeira, afinal, esse é o lugar em que “2 + 2 = 5?. É a faixa que abre “Hail To The Thief”. Ela começa eletrônica para no terceiro segmento explodir em barulho de guitarras. Em “Sit Down Stand Up”, outra faixa eletrônica e carregada de climas, uma voz ordena: “Ande pelo portal do inferno”.
Já “Backdrifts”, também dominada por batidas eletrônicas e teclados gélidos ao fundo, define: “Nós somos frutas podres / Nós somos artigos estragados / Que diabos, não temos nada mais para perder / Um vento e nós vamos provavelmente esfarelar”. O rock dá as caras em “Go To Sleep”, uma das grandes canções do álbum. Thom repete e repete e repete: “Só por cima do meu cadáver”. A excelente “Where I End and You Begin” tem como personagem um anjo que não pode participar da história e fica observando tudo das nuvens, mas não pode descer, e que no final sentencia: “Eu irei comer todos vocês vivos / Não haverá mais mentiras”.
“We Suck Young Blood” tem clima jazz de botecos toscos no fim de uma noite terrivelmente escura. “The Gloaming”, a faixa mais chatinha do disco (na cola dos climas desconstruídos de “Kid A”/”Amnesiac”), avisa: “Gênio, saia da lâmpada: é hora das feitiçarias”. O single do disco e uma das faixas poderosas do Radiohead nos anos 00 se chama “There There” e começa como uma mantra, com tambores (tocados em shows por Jonny Greenwood e Ed O’Brien) fazendo a cama para a voz de Thom Yorke que crava no peito do ouvinte: “Só por que você sente, não significa que esteja lá”. No final, após um belíssimo solo de guitarra, outro aviso: “O Céu enviou-te para mim / Nós somos acidentes que ainda vão acontecer”.
“I Will” é uma belíssima balada valorizada pela melancolia da voz e coro. O final do álbum aposta na eletrônica com a ótima “A Punchup at a Wedding” (de letra escarrada: “Você tinha que mijar no nosso desfile / Você tinha que estragar nosso grande dia / Você tinha que arruinar tudo por causa / De uma briga de bêbados no casamento”), a pirada “Myxomatosis” (”O gato vira-lata voltou pra casa / Carregando uma cabeça / E foi direto exibi-la / Aos seus novos amigos”) e a bonita “Scatterbrain”, uma canção prima em climas e nudez de “I Will”.
Senhores de seus próprios destinos, os integrantes do Radiohead conquistaram o direito de fazer o que quiserem em um disco. “Hail To The Thief” exibe flashs dessa liberdade num resultado tão coeso que soa injusto deixa-lo sob a sombra de “The Bends”, “Ok Computer”, “Kid A” e “Amnesiac”, os quatro álbuns que dividem a preferência dos ardorosos fãs do grupo. É um complicador para quem se acostumou a lançar obras definitivas, pois qualquer coisa que esteja um pouco inferior fica em segundo plano. E, geralmente, essas obras menores são maiores do que a carreira inteira de saqueadores e não iluminados. Se fosse um disco do Muse, do Elbow, do Remy Zero ou do Coldplay, “Hail To The Thief” seria considerado uma obra-prima. É um disco belíssimo de uma banda singular, rara, especial, repleta de belíssimos discos.
Para o final, “Hail To The Thief” convoca Beethoven na melhor canção do álbum. A “Sonata ao Luar” abre “A Wolf at the Door”, faixa derradeira do álbum. Thom Yorke está furioso e atropela frases desconexas que montam um clima absurdo e doentio. É o mundo desencantado e claustrofóbico do vocalista se parecendo cada vez mais com o mundo de todos nós. Mas, claro, nem tudo está perdido. E a esperança é jogada nos braços das “crianças”, provavelmente a palavra mais repetida em “Hail To The Thief”. Parece que Thom assume o mundo sombrio que vivemos sem desistir de lutar, sabendo que as crianças de hoje têm tudo para ser a salvação do amanhã. Na terceira faixa, “Sail to the Moon”, uma dica: “Talvez você seja presidente / E saiba o que é certo e o que é errado / E no meio da inundação / Construirá uma arca”.
E o filho de Thom Yorke se chama Noé…
Radiohead
Hail To The Thief
(2003)
1. 2 + 2 = 5
2. Sit Down. Stand Up
3. Sail To The Moon
4. Backdrifts
5. Go To Sleep
6. Where I End And You Begin
7. We Suck Young Blood
8. The Gloaming
9. There, There
10. I Will
11. A Punch Up At A Wedding
12. Myxomatosis
13. Scatterbrain
14. A Wolf At The Door
RADIOHEAD CD's & MP3's: BuscaPé • MercadoLivre • Amazon • Insound • 7digital
[Por Marcelo Costa, jornalista e editor do Scream & Yell]
Se o mundo não fosse um lugar tão cruel e a caça aos célebres tão intensa, “Hail To The Thief”, sexto álbum do Radiohead, seria o disco óbvio após o estrondoso sucesso do mítico “Ok Computer”. Acontece que o sucesso é uma moeda de dois lados bem definidos, e um deles cobra seu quinhão com voracidade, pois o mundo ainda não está pronto para lidar com pequenos momentos de genialidade. A vida, porém, sempre surpreende, e pressionados contra o muro, o Radiohead deu um giro de 180 graus para baixar a guarda do mundo e voltar a fazer o que realmente gosta em seu disco mais à vontade.
Thom Yorke virou celebridade com o sucesso de “Ok Computer”, e a banda quase entrou em colapso com a rotina – muitas vezes destruidora – da fama. O flagrante deste momento foi registrado no filme “Meeting People Is Easy”, retrato de uma banda se libertando do mercado fonográfico (e de si mesma), e foi amplificado com a dobradinha de discos de atmosfera eletrônica e antipop lançados na seqüência: “Kid A” (2000) e “Amnesiac” (2001). No começo de 2002, o vocalista confidenciava: “Bem, a idéia é não usar computadores no novo disco. Vamos ver quanto tempo que dura (rindo)”.
Antes de a banda entrar em estúdio, porém, uma decisão daquelas que só o Radiohead tem culhão de tomar levou o grupo para shows na Espanha e Portugal em julho e agosto com nada menos do que 16 canções inéditas na bagagem sendo que 12 entraram em “Hail To The Thief”. Os shows caíram na web, fãs discutiam e babavam nas novas canções, e a banda acompanhava online o burburinho como se estivesse consultando amigos sobre o que fazer com seu próprio futuro.
Como resultado deste método, as gravações de “Hail To The Thief” duraram apenas quatro semanas, com a banda optando por duas semanas na ensolarada Los Angeles (e outras duas em sua cidade natal, Oxford) em detrimento de estúdios do gélido leste europeu que abrigaram as sessões de “Kid A” e “Amnesiac”. Explicava Thom Yorke: “Os dois últimos registros em estúdio foram uma verdadeira dor de cabeça. Gastamos tanto tempo com computadores que chegamos a um ponto em que dissemos: ‘Isso é suficiente. Nós não podemos mais fazer isso’”. Não podiam, mas fizeram de novo. Ou quase.
“Hail To The Thief” não é só o alardeada volta às guitarras do quinteto. Ele bate no liquidificador a inocência juvenil (aqui, vertida em experiência) dos dois primeiros álbuns com a virulência distanciada dos dois discos de esconderijo (”Kid A” e “Amnesiac”). O resultado é, ao mesmo tempo, simples e grandioso. Climas densos alternados com guitarras, às vezes, na mesma canção. As canções soam mais cheias, inventivas, variadas, tensas, emocionais. É o Radiohead atingindo a maioridade e se reinventando em um mundo que se reinventa a todo minuto.
Cinco anos depois de “Ok Computer”, o mundo já tinha digerido e entendido qualé a do grupo, o que fez com que o álbum decolasse nas paradas, mas não transformasse a banda na última novidade do verão (algo meio inconcebível já que, naquela época, eles carregassem dez anos de estrada nas costas). Eles deram uma volta ao mundo e decidiram parar o tempo, optando por brincar – estilosamente – de difíceis na expectativa de que o mundo os alcançasse. E finalmente o mundo os alcançou, mas se as guitarras voltaram ao som do quinteto, o mau-humor com o estado das coisas atingiu picos estratosféricos nas letras.
Não à toa, se a palavra “amor” ficou de fora de “Amnesiac”, em “Hail” ela só aparece perdida e nua na última (e grande) música do álbum, “A Wolf At The Door”. Nas outras, “inferno”, “veneno”, “diabo”, “frutas podres”, etc…, nos fazem lembrar que viver no Planeta Terra no ápice do capitalismo não é brincadeira, afinal, esse é o lugar em que “2 + 2 = 5?. É a faixa que abre “Hail To The Thief”. Ela começa eletrônica para no terceiro segmento explodir em barulho de guitarras. Em “Sit Down Stand Up”, outra faixa eletrônica e carregada de climas, uma voz ordena: “Ande pelo portal do inferno”.
Já “Backdrifts”, também dominada por batidas eletrônicas e teclados gélidos ao fundo, define: “Nós somos frutas podres / Nós somos artigos estragados / Que diabos, não temos nada mais para perder / Um vento e nós vamos provavelmente esfarelar”. O rock dá as caras em “Go To Sleep”, uma das grandes canções do álbum. Thom repete e repete e repete: “Só por cima do meu cadáver”. A excelente “Where I End and You Begin” tem como personagem um anjo que não pode participar da história e fica observando tudo das nuvens, mas não pode descer, e que no final sentencia: “Eu irei comer todos vocês vivos / Não haverá mais mentiras”.
“We Suck Young Blood” tem clima jazz de botecos toscos no fim de uma noite terrivelmente escura. “The Gloaming”, a faixa mais chatinha do disco (na cola dos climas desconstruídos de “Kid A”/”Amnesiac”), avisa: “Gênio, saia da lâmpada: é hora das feitiçarias”. O single do disco e uma das faixas poderosas do Radiohead nos anos 00 se chama “There There” e começa como uma mantra, com tambores (tocados em shows por Jonny Greenwood e Ed O’Brien) fazendo a cama para a voz de Thom Yorke que crava no peito do ouvinte: “Só por que você sente, não significa que esteja lá”. No final, após um belíssimo solo de guitarra, outro aviso: “O Céu enviou-te para mim / Nós somos acidentes que ainda vão acontecer”.
“I Will” é uma belíssima balada valorizada pela melancolia da voz e coro. O final do álbum aposta na eletrônica com a ótima “A Punchup at a Wedding” (de letra escarrada: “Você tinha que mijar no nosso desfile / Você tinha que estragar nosso grande dia / Você tinha que arruinar tudo por causa / De uma briga de bêbados no casamento”), a pirada “Myxomatosis” (”O gato vira-lata voltou pra casa / Carregando uma cabeça / E foi direto exibi-la / Aos seus novos amigos”) e a bonita “Scatterbrain”, uma canção prima em climas e nudez de “I Will”.
Senhores de seus próprios destinos, os integrantes do Radiohead conquistaram o direito de fazer o que quiserem em um disco. “Hail To The Thief” exibe flashs dessa liberdade num resultado tão coeso que soa injusto deixa-lo sob a sombra de “The Bends”, “Ok Computer”, “Kid A” e “Amnesiac”, os quatro álbuns que dividem a preferência dos ardorosos fãs do grupo. É um complicador para quem se acostumou a lançar obras definitivas, pois qualquer coisa que esteja um pouco inferior fica em segundo plano. E, geralmente, essas obras menores são maiores do que a carreira inteira de saqueadores e não iluminados. Se fosse um disco do Muse, do Elbow, do Remy Zero ou do Coldplay, “Hail To The Thief” seria considerado uma obra-prima. É um disco belíssimo de uma banda singular, rara, especial, repleta de belíssimos discos.
Para o final, “Hail To The Thief” convoca Beethoven na melhor canção do álbum. A “Sonata ao Luar” abre “A Wolf at the Door”, faixa derradeira do álbum. Thom Yorke está furioso e atropela frases desconexas que montam um clima absurdo e doentio. É o mundo desencantado e claustrofóbico do vocalista se parecendo cada vez mais com o mundo de todos nós. Mas, claro, nem tudo está perdido. E a esperança é jogada nos braços das “crianças”, provavelmente a palavra mais repetida em “Hail To The Thief”. Parece que Thom assume o mundo sombrio que vivemos sem desistir de lutar, sabendo que as crianças de hoje têm tudo para ser a salvação do amanhã. Na terceira faixa, “Sail to the Moon”, uma dica: “Talvez você seja presidente / E saiba o que é certo e o que é errado / E no meio da inundação / Construirá uma arca”.
E o filho de Thom Yorke se chama Noé…
Radiohead
Hail To The Thief
(2003)
1. 2 + 2 = 5
2. Sit Down. Stand Up
3. Sail To The Moon
4. Backdrifts
5. Go To Sleep
6. Where I End And You Begin
7. We Suck Young Blood
8. The Gloaming
9. There, There
10. I Will
11. A Punch Up At A Wedding
12. Myxomatosis
13. Scatterbrain
14. A Wolf At The Door
RADIOHEAD CD's & MP3's: BuscaPé • MercadoLivre • Amazon • Insound • 7digital
Nenhum comentário:
Postar um comentário