Radiohead - Amnesiac (2001)

Amnesiac, a vanguarda do rock
[Por Marco Tomazzonido do iG Música e do US Cultura para o site Scream & Yell]

No início do século, o Radiohead era aquele grupo que tinha esculpido um lugar na santíssima trindade do rock contemporâneo com o irrefutável “Ok Computer”. A soberania não fez com que o grupo pisasse no freio e, na virada da década, o mítico ano 2000, apareceu “Kid A”, um disco que abria mão das guitarras para investir em inquietude, experimento e dor, muita dor. A surpresa foi, apenas oito meses depois, “Amnesiac” ter sido lançado, irmão em primeiro grau do álbum anterior.

Ambos foram gravados nas mesmas sessões e separados ao nascimento. Não são poucas as coletâneas encontradas na web em que fãs tentam achar qual seria a ordem correta das faixas se as gravações tivessem dado origem a um disco duplo. Apesar do parentesco inconteste, cada um tem sua personalidade. “Amnesiac” não se trata, como alguns simplistas possam pensar, de uma coleção posterior de lados B, pelo contrário: os álbuns refletem prismas diferentes. Como disse Thom Yorke, “Kid A” vê fogo na floresta; em “Amnesiac”, se está na floresta.

A filiação, no entanto, deixa evidente a tentativa de abandonar o rock tradicional, entre aspas, e abraçar a vanguarda, onde não se tem fronteiras. Versos quebrados, filosofia e eletrônica entram em cena para atirar ao alto a vontade de agradar as massas e agradar, sim, as massas cinzentas. O guitarrista Ed O’Brien já afirmou que o objetivo do quinteto era trabalhar como um coletivo, subverter o conceito de banda para investir em “sons”, por mais abstrato que isso possa parecer. O fato é que eles chegaram a algo parecido, uma maturidade interna iniciada no experimentalismo de “Kid A”, em que melodias deram espaço a texturas perturbadas, herméticas, complexas como harmonias de jazz e circulares como krautrock.

“Amnesiac” abre com “Packt Like Sardines in a Crushd Tin Box”, que repercute na percussão metálica a lata do título. A melancolia, desespero e desilusão característicos da pena de Yorke temperam a letra. “Após anos de espera, nada aconteceu”, ele canta, numa linha eletrônica típica do Aphex Twin, entremeada por distorções e ruídos climáticos, originários de um território desconhecido.

Na época, Thom Yorke declarou à imprensa britânica que o álbum transmite a sensação de se “encontrar um velho baú no sótão recheado com notas, mapas e descrições de um lugar de que você não consegue se lembrar”. Na contracapa, uma advertência na mesma linha: “Guarde longe da luz direta, preferencialmente numa gaveta escura com seus segredos”.

Ecos disso deságuam na primeira faixa de “Amnesiac” e escorrem por todas as outras. “Pyramid Song”, a canção seguinte, trata pura e simplesmente de suicídio. O piano dita notas melancólicas e carregadas de agonia, apenas três, para uma bateria no fundo, firme, acentuar o drama. “Não havia nada para temer e nada para duvidar.” Com ajuda das orquestrações de Jonny Greenwood, tenta nos convencer do alívio da morte. Música nada usual para ser escolhida como primeiro single, prova de que, apesar de ligado à EMI, o Radiohead não tinha nada de submisso e segurava com garbo as rédeas da carreira.

Yorke chegou a falar que “Pyramid Song” era a melhor coisa que o Radiohead já tinha gravado. Hoje nem ele deve mais acreditar nisso: disse no calor da hora, talvez numa tentativa de autoafirmação ou validação da experiência do grupo. Até porque o mesmo ar experimental e de efeitos distorcidos passeia por “Pull/Pulk Revolving Doors”, liderada por uma batida eletrônica envolvente como as portas da letra, armadilhas que se fecham para não abrir mais.

A primeira grande gema reluz em “You and Whose Army?”. Um coro cantarolando no início dá a entender que vem beleza, e só surge dor. Acompanhado por uma guitarra chorosa, Yorke debocha com voz cambaleante, de alguém que já apanhou, a boca cheia de sangue, moral na sarjeta, mas seguro de que estar na pior não quer dizer porcaria nenhuma. “Pode vir se você acha que consegue encarar todos nós”, desafia, em um recado direto, dizem, ao então primeiro-ministro britânico, Tony Blair, e a seus companheiros do partido trabalhista.

As guitarras, cuja ausência serve de munição para a grande maioria dos detratores de “Kid A” e “Amnesiac”, dão seu recado em “I Might Be Wrong”, também título do álbum ao vivo lançado pouco depois. Levemente dançante, a música dá destaque para o baixo de Colin Greenwood e muda de clima rumo ao final, abrindo alas, veja só, para um pequeno solo de O’Brien.

Na sequência, vem a assombrante “Knives Out”. Sem experimentações, segue uma linha de guitarra que se esgueira do início ao fim. A simplicidade, reza a lenda, fez com que ela levasse mais de um ano para ser concluída, já que o grupo nunca parecia estar satisfeito com o resultado. A letra, um primor, é aberta o suficiente para ser interpretada como canibalismo, como Yorke já comentou, ou como a perda de um ente querido. É mais divertido, claro, imaginar que se trata de uma aventura canibal encerrada com o verso “coloque ele na panela”.

Incluída em “Kid A”, “The Morning Bell” ganhou uma regravação diferente, e melhor. Saiu a bateria marcada de Phil Selway para entrar um xilofone, lindo, evocando um desespero angelical, seja lá o que isso for. A instrumental “Hunting Bears” também supera “Treefingers”, do disco anterior. Sozinha, acompanhada apenas pelo vento (!) e por um sintetizador discreto, a guitarra de Jonny evoca um clima árido típico das trilhas sonoras de Ry Cooder.

Se “Amnesiac” tem seus pontos altos, peca por não ter uma sequência deliberada – o conjunto de faixas é menos coeso do que “Kid A” e é agrupado de modo arbitrário, dizem até que de forma proposital, para provocar uma estranheza clara entre os dois discos. Especulações à parte, é notório que “Dollars & Cents”, uma crítica genérica de Yorke ao sistema financeiro, e “Spinning Plates”, quase ininteligível ao brincar com sons ao contrário, seguem o mesmo espírito do álbum, mas têm menor quilate no conjunto.

O mesmo não se pode dizer de “Life in a Glass House”. Gravada no final de 2000, em uma sessão de estúdio exclusiva, a música dá um passo à frente ao flerte com o jazz esboçado em “The National Anthem” e, grosso modo, é justamente isso: o Radiohead tocando jazz. Na verdade, o crédito é mais de Humphrey Lyttelton e sua banda – o saudoso trompetista, na época com 80 anos, é apontado por Greenwood como o principal responsável pela faixa. Ao lado do clarinete, o trompete brilha no refrão, em um dos principais destaques do álbum. Não é a despedida sacra e redentora de “Motion Picture Soundtrack”, mas fornece a salvação do mesmo modo.

Importa saber para onde pende a balança, se para “Kid A” ou “Amnesiac”? Nem um pouco. A competição entre irmãos é real (quem tem sabe como funciona) e, por mais que os pais digam o contrário, sempre há um preferido. Há quem aposte no primogênito, outros vão acabar ficando com o irmão menor, tem gosto para tudo. Importa, sim, é que juntos os dois álbuns demarcam um dos alicerces do que é o Radiohead hoje, pós “Hail to the Thief” e o cheque-mate midiático de “In Rainbows”: a banda mais influente do rock mundial, uma mistura de guitarras, melodia e vanguarda. Parece definitivo, presunçoso demais, como as verdades sempre parecem.

Radiohead
Amnesiac
(2001)

1. Packt Like Sardines In A Crushed Tin Box
2. Pyramid Song
3. Pull/Pulk Revolving Doors
4. You And Whose Army?
5. I Might Be Wrong
6. Knives Out
7. The Morning Bell/Amnesiac
8. Dollars And Cents
9. Hunting Bears
10. Like Spinning Plates
11. Life In A Glasshouse

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